quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

I - Nasce uma Vampira

Dor, calor, queimação, fogo... minha cabeça fervia, literalmente, podia sentir o sangue borbulhando ao passar por meu crânio, tentei abrir os olhos mas fui impedida pela claridade, imaginei que mesmo se pudesse abri-los de nada me adiantaria, a luz me cegava. eu estava em posição fetal, a cabeça sobre meu braço esquerdo, meu longo cabelo cobrindo parte de meu rosto, tateei meu corpo devagar com minha mão direita nada estranho alem de minha nudez, onde eu estava? O que teria acontecido? Dor e angustia, o chão frio e úmido era meu único alento. Passei minha mão por meu estomago, meus seios, ombros, pescoço, -sim, meu pescoço!- esse ponto era a origem de minha dor, sentia línguas de fogo passando por todo meu corpo, tentei me esticar para ter um pouco mais de conforto ao aumentar a superfície de contato com o piso que agora me parecia lamacento, sua textura havia se modificado, - impressão minha - pensei, e então a dor se intensificou, minha cabeça já não ardia tanto comparada ao que sentia em minhas entranhas, agora era esse o principal ponto a arder, passei minha mão ao umbigo -Ha quanto tempo estava nessa situação? Por quanto tempo continuaria minha tortura?- Desejei morrer com todas as minhas forcas e consegui gritar, ou urrar, não sei bem... comecei a ter espasmos meus dedos se contraíram, meu coração se tornara o alvo principal agora, não sei quanto tempo agüento! Perdi as forcas e apaguei.

Acordei, era noite, ou pelo menos parecia ser, a luminosidade estava estranha, me movi com cuidado, eu estava de bruços, olhando para meu lado esquerdo tentei me localizar, eu estava em uma galeria de concreto, o piso tinha caimento para o centro da galeria onde um fio de água suja corria lentamente, a saída estava próxima, uns poucos metros a minha frente, então me dei conta que a dor tinha desaparecido por completo, me levantei apoiada a parede, o teto ficou poucos centímetros acima de minha cabeça, ainda apoiada, mas percebendo o quanto era desnecessário esse gesto, caminhei lentamente em direção a luz, como uma mariposa o teria feito.

Ao chegar ao final do fétido túnel não encontrei uma saída e sim um rio morto, uma cloaca cercada por encostas de concreto, o cheiro intenso de dejetos humanos entrava pelas minhas narinas, eu queria sair desse lugar! Na margem oposta, veículos alinhados em varias filas seguiam uma mesma direção, provavelmente sobre minha cabeça haveria outras pistas.

-Preciso sair desse buraco!

Instintivamente voltei vários metros dentro da galeria, precisava pegar impulso, me lancei novamente em direção a luz e ao chegar à saída saltei para a margem oposta, cerca de trinta metros, aterrissei atrás de uma pilha de entulho. Meu corpo branco brilhava sob as luzes da cidade, minha reação normal deveria ter sido parar um carro e pedir ajuda, me vestir com trapos, mas de alguma forma eu sabia que deveria sair sozinha dessa, eu não era normal.

Do outro lado da avenida havia um muro alto e eu podia sentir a presença de três humanos ali, saltei mais duas vezes e em seguida eu estava com meus dentes cravados em um deles, um vigilante de meia idade, antigo policial, uma existência marcada pela culpa, sem família ou amigos, ele ha muitos anos havia matado sua namorada por ciúmes, flashes de sua vida passavam sobre minha mente enquanto bebia seu sangue, suas memórias desapareceram, ele estava seco, eu queria mais! Joguei seu corpo contra a guarita vazia e saí em busca dos outros cheiros, eles estavam misturados, suspirando e gemendo, um sobre o outro os encontrei em uma espécie de almoxarifado, quando abri a porta o homem disse:

-Messias seu sacana! Volta pra guarita que ainda não chegou sua vez!

-Messias eu? Não, no máximo uma Sibila!

Não dei tempo para perguntas, antes que ele piscasse eu já estava no fundo do cômodo, seu sangue amargo descendo pelo meu esôfago, ele ate que tentou resistir – inútil – pensei enquanto me alimentava dessa vida mesquinha e pequena, seu sabor era realmente desagradável, eu estava por trás sugando seu pescoço segurando seus cabelos crespos com minha mão esquerda, fixando seu corpo contra o meu com minha perna direita presa firmemente sobre seus quadris. Senti um leve desconforto enquanto seu sangue percorria meu corpo, não gostei, com ajuda de minha mão direita quebrei seu pescoço e deixei o cadáver, passando para a próxima pessoa.

A mulher estava encolhida no canto olhando fixamente para mim, podia sentir a forte vibração de seu corpo em pânico; alguma coisa, não sei se seus olhos arregalados, seu forte odor de baunilha e sexo ou sua aparência frágil me fizeram sentir pena daquela criatura, eu também já estava praticamente saciada, então me dirigi a ela.

Parei em pé em sua frente, ela não se moveu. Pude então perceber o que se passava por sua cabeça, e percebi a pergunta-O que é você? Isso me irritou profundamente, eu não sabia a resposta, até esse momento eu havia agido seguindo apenas instintos. Senti a necessidade urgente de respostas, devolvi a pergunta:

-O que você acha que sou? - E foi então que ouvi de seus lábios trêmulos a resposta:

-Uma vampira?!

-Vampira... pensei alto. - Saia daqui! - Gritei com uma voz estridente.

A podre mulher nem sequer pensou em se vestir, saiu correndo pela fabrica e eu nunca mais a vi.

Peguei parte das roupas que estavam no chão, eu teria que me misturar. Uma mini saia jeans bem surrada desfiada nas pontas e uma camiseta pink de viscose com gola canoa e apliques prateados redondos sobre o peito esquerdo em forma de uma borboleta, não me passou pela cabeça naquele momento como poderia estar ridícula com roupas que meus quadris mal preenchiam, precisei utilizar a gravata do segundo vigilante, a qual tinha um odor acre desagradável como o sabor de seu antigo dono.
Um zumbido incessante, uma confusão de pensamentos, saciada a fome o instinto deu lugar a razão. Eu tentava organizar minha cabeça, o que estava acontecendo? Onde eu estava? Quem ou o que eu era? Estava viva ou morta? Se morta, como haveria morrido?

-Uma coisa por vez- e em meio ao turbilhão novamente o instinto:

-Preciso sair daqui!

Não sei bem se caminhei, corri ou voei, mas em poucos segundos percorri um corredor escuro, um pátio e saltei um muro de uns quatro metros, segui correndo na direção sul ou sudoeste, passei sobre trilhos ao percorrer um viaduto e apenas reparei brevemente em grandes chaminés de tijolos à esquerda, segui em frete por uma avenida cortada por grandes arvores, subi, desci... sempre correndo, alheia a todos os odores, formas, direções, o turbilhão em meu cérebro me privando os sentidos. Apenas corri, sim corri, mas mais rápido que os poucos veículos que encontrei. Cheguei a um ponto que me pareceu ser um dos mais se não o mais alto da cidade, na rua havia uma praça de um lado e casinhas geminadas de outro. Procurei um canto isolado da praça o que não foi difícil de encontrar uma vez que seu declive acentuado rapidamente privou-me de ser vista por quem passasse na rua de cima e as quaresmeiras se ergueram como uma cortina de crochê perante as residências do lado de baixo. Sentei-me sobre minhas pernas flexionadas como as de uma gueixa sob as copas e então foquei a paisagem, um mar de pontos incandescentes.

Inalei profundamente o ar noturno, um cheiro misto de terra, urina e eucalipto inflou meu peito.

Organizar e resolver as questões.

Primeiro o mais importante, - estou viva?

Cravei meus dedos na grama úmida pelo sereno e levantei dois tufos de terra – matéria- mas a noção de um corpo físico não respondia totalmente, será que era uma ilusão? Olhei para minhas mãos, meus braços esticados um pouco abaixo da linha de meus ombros, elas ainda estavam cheias de terra, vagarosamente abri e movimentei meus dedos para que a substância novamente caísse no chão, eu respirava, podia sentir agora o cheiro do vira-lata que fugia pela rua de baixo, o cheiro das pessoas nos carros e o enxofre dos motores dos carros. Levei a mão direita ao meu coração, ele não batia! Mas ao me recordar de Descartes conclui minha existência, eu tinha que existir, eu estava viva com coração ou sem!
Segunda questão: - Quem sou eu?
Uma Vampira? Possível, mas não me lembrava de ter saído de um ovo de vampiro ou de alguma barriga vampira. Geração espontânea? Não, eu percebi ter uma bagagem cultural não advinda do esgoto, a única certeza era a de ser diferente, não havia nada alem da dor que senti naquela galeria pluvial em minhas memórias.

Memória, é isso! Ou a falta disso...
Tentei me lembrar de meu nome, nada!

Tentei me lembrar de meu rosto, nada!

Por mais que forçasse o limite era a dor.

Respostas... preciso encontrá-las

Não sei por quanto tempo me forcei ultrapassar a barreira da dor, apenas desisti quando o céu começou a mudar de cor e minha visão a enfraquecer, instinto novamente, precisava de abrigo!

Me levantei e tentei focar a vizinhança, inflei meus pulmões e procurei por odores de mofo, cupim, fezes de ratos, qualquer sinal de uma casa abandonada nas redondezas, o vento estava a meu favor, pude notar a algumas dezenas de metros o que parecia ser a obra abandonada de uma imitação barata de um castelo ou uma fortaleza, a casa inacabada de alguma mente afetada, hilário! A obra abandonada serviria de refugio por um dia, -será que preciso saltar sobre o fosso? Gargalhei em seguida, -um pouco de humor negro ajuda! Corri em direção a casa e que decepção, nem fosso nem masmorra, dessa vez contive o riso ao me ordenar:

– Foco!
Ao invadir saltando sobre o muro procurei pelo cômodo mais escuro, encontrei um espaço de 3x2m aproximadamente com uma pequena abertura próxima ao teto em uma das paredes, provavelmente reservada para um vitrô, a qual dava diretamente para o muro de arrimo que havia no fundo do terreno. - Esse lugar será perfeito-, então encostei-me a uma das paredes laterais e deixei que meu corpo escorregasse até o chão, agora não era mais hora de procurar respostas, eu precisava descansar.


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