quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

III - Flashes

Por um bom tempo, algumas semanas, vaguei perdida pela cidade e não encontrei qualquer outro vampiro. A cada dia percebia pequenas mudanças acontecendo, meus sentidos estavam se aguçando. Eu podia ouvir claramente um rato andando no túnel do metro a uma centena de metros, minha pele se tornara sensível a pequenas mudanças de temperatura e umidade no ambiente, meus olhos tinham uma incrível capacidade de focar objetos a longa distância ou em movimento acelerado, eu interpretava melhor os odores que se chocavam contra minhas narinas, e o sabor do sangue... podia dizer o que cada vitima havia comido, sentia a adrenalina, endorfina... e ia além, um novo sentido experimentado em minha primeira noite como vampira e agora intenso prazer, eu podia vasculhar a cabeça de minhas vitimas enquanto bebia seu sangue, tinha a capacidade de selecionar suas memórias e aprender com elas, essas memórias também me propiciavam sobrevivência e camuflagem, podia absorver o conteúdo de um livro lido, um numero de conta e também segredos e sentimentos. Tornei-me exigente com o cardápio, não queria carregar a culpa da morte de uma pessoa pura, traficantes, assassinos, estupradores... a cidade de São Paulo me proporcionava um menu maravilhoso, com eles aprimorei, por ironia, a caça. Técnicas de assalto, contatos criminosos, aprendi com o submundo. O instinto parou de me dominar na hora da caça, eu era seletiva e meticulosa. Meu biorritmo também se alterou, agora apenas três horas de um sono leve eram suficientes para minha regeneração.


Eu sentia a plenitude de minha condição "criatura noturna". Com dinheiro roubado de minhas presas – eu gostava de pensar mais em aquisição- levava uma vida confortável em uma suíte envidraçada no décimo oitavo andar de um hotel na região da Avenida Paulista, a vista privilegiada sobre a cidade me inspirava sempre novos locais de caça e diversão. Sim eu me divertia muito, meu corpo indestrutível e belo somado à força absurda adquirida e uma carteira cheia abriam as portas em todos os ambientes da cidade. Das exclusivas casas noturnas nos jardins aos “risca-faca” na periferia, eu aproveitava cada balada como se fosse a primeira! A diversidade metropolitana surpreendia a cada programa. Tudo era novidade, não sei se pelo meu olhar vampiro ou pela ausência de memórias, me sentia como uma adolescente, descobrindo o mundo em plena mudança hormonal. E o mais importante: liberdade!

A total e absoluta liberdade. Eu tinha o poder de fazer o que quisesse, quando e como bem entendesse. Apenas procurava não chamar muita atenção nem importunar inocentes com os surtos de ego. Nesse momento a frase:

“Yo soy pájaro corsario que no conoce el alpiste”,
provavelmente ouvida em uma musica antes de minha transformação, ressoava em minha cabeça, não consegui identificar a canção, mas isso não me importava.

As coisas mudaram com a chegada das primeiras chuvas de verão. Era um fim de tarde tempestuoso, raios rasgavam a paisagem monocromática. Aconchegada em uma chaiselongue contemplava o clima. Fechei meus olhos e, rápido como frames perdidos de uma propaganda subliminar, seu rosto apareceu em meus sonhos. Eu estava perdida em uma paisagem estilo Caspar David Friedrich, chovia muito também e a cada lampejo ele estava lá, olhando pra mim, seus olhos mareados, ou apenas molhados pela chuva, me fitavam com muita dor e zelo. Estiquei os braços em direção às nuvens e tentei tocá-lo, mas então a tempestade se dissipou e tudo que eu enxergava era névoa. No desespero acordei sobressaltada, apavorada com um grito saído do fundo de minha garganta. Antes que pudesse refletir estava em pé defronte a cidade prateada.

Emoção, angustia, sentimentos tão imensos que por alguns instantes julguei serem capazes de romper minha pele. Precisei levar minhas mãos ao colo. A paixão não cabia em meu peito e eu não encontrava uma maneira de extravasar a intensidade das emoções.Minhas entranhas queimavam, senti meu rosto quente, uma forte sensação de efervescência tomou conta de minh’alma. Dor e fogo, amor e desejo.

Pela primeira vez em minha existência vampiresca me senti só, ou me enxerguei assim. Só e carente.

Desejei amar aquele homem, seria capaz de abdicar de minha imortalidade por ele.Então me estremeci com a lembrança de seu cheiro e fiquei ainda mais confusa e desesperada.
Teria sonhado com o cheiro?
Teria eu criado esse cheiro?
Não, acreditava que era uma memória, me agarrei a isso com a esperança de que esse fosse o primeiro insight sobre minha vida passada, com esperanças de que ele fosse real.

Novamente fechei meus olhos, agora ereta, com a testa espremida contra o grosso vidro da janela, as mãos fechadas em punho na altura de meus ombros, bloqueando a paisagem. Tentei me concentrar em sua imagem e perfume mas a sensação no estomago e os choques que percorriam meu corpo turvavam minha mente. Deixei-me cair ao chão, simplesmente relaxei todos os músculos entregue à emoção. Encolhi o corpo sobre o carpete macio em posição fetal, puxei o lençol que estava sobre a chaiselongue envolvendo-me como uma crisálida. Fiquei assim por uns bons minutos, agarrada a sonho ou recordação. Tentei dormir novamente, fechar meus olhos e cair em seus braços. Não consegui, eu estava muito excitada, apenas um cheiro e um rosto...

Então uma palavra martelou minha cabeça:

-Licancabur!
O que essa palavra significava? Que idioma estranho era esse? Era o nome dele?
Tinha urgência em descobrir. Agarrada a meus devaneios me levantei, era cerca de 17h, eu ficara imóvel no carpete por mais de trinta horas!
Levantei, fui ao guarda-roupa e escolhi cuidadosamente o que vestir, ainda sim fui rápida, porem me vi diante de um dos primeiros momentos de vaidade em que eu me vestia para alguém, sim agora eu me vestia pra ele. Escolhi uma lingerie de renda vinho com detalhes dourados da marca La Perla, uma saia lápis preta e uma camisa se seda preta levemente decotada, me achei recatada e sexy ao mesmo tempo, perfeito! Calcei um stiletto vinho com salto preto. Passei meus dedos entre meus cabelos ondulados, e pronto, não precisava mais, não queria maquiagem.
Peguei uma pasta preta de couro e acomodei dentro meu laptop, eu precisava sair desse quarto, prostrada no chão eu nunca o encontraria. Peguei meus óculos de sol, necessários mesmo ao entardecer e sai.
Fui a um café discreto e charmoso na alameda tietê, apenas a algumas quadras do hotel. A penumbra do lugar imediatamente aliviou o desconforto em meus olhos causados pela luz do crepúsculo, sentei no fundo em uma mesa ao lado de um grande vaso com um filodendro que subia pelas paredes. Pedi um expresso e uma água com gás apenas para dissimular, agia sempre assim em cafés, pedia líquidos e me sentava ao lado de um vaso. Retirei o laptop de minha bolsa e o abri apreensivamente na mesa, pacientemente esperei a maquina iniciar, me conectei à internet local, abri uma pagina do safári que estava programado para iniciar automaticamente com o Google e então digitei as 10 letras: - Licancabur!
Varias páginas retornaram minha pesquisa, todas se referiam à mesma coisa, um vulcão, localizado na fronteira entre o Chile e a Bolívia. A Principio apenas consegui informações geográficas, era um estratovulcão, ou seja, em forma de cone, elevação de 5916 m, latitude 22.83°S, longitude 67.88°W, tem um lago de 40x90m no topo, é o quinto lago mais alto do planeta... Havia algumas lendas incas, mas nada em especial. Continuei filtrando os sites, tinha varias janelas abertas ao mesmo tempo em meu computador. Então uma historia me chamou a atenção, um blog escrevia que por volta de 1995 um mergulhador havia encontrado uma esfera de cristal na lagoa, ao trazer o objeto para a superfície a esfera queimou suas mãos e caiu novamente na água, logo após esse fato apareceram alguns ufólogos na região e camponeses relataram terem sido importunados por uma criatura conhecida como chupacabras, que atacava os rebanhos e deixava os animais exangues com dois furos em seu pescoço.
-Mas essa historia sobre o chupacabras...- era um vampiro, só podia ser! Um vampiro esteve por ali e provavelmente se alimentou de animais por estar em um povoado tão pequeno, foi sua maneira de ser discreto, melhor um chupacabras do que um vampiro aterrorizando camponeses. Era isso, ele já passou por lá! eu precisava ir a esse lugar, essa era a única pista que eu tinha!
-Preciso ir ao Chile!
Guardei meu notebook enquanto pedia a conta para a garçonete, precisava iniciar a busca por ele. Paguei a conta deixando uma gorjeta generosa, não queria esperar pelo troco, levantei e me controlei para não correr rápido demais em direção ao hotel, precisava controlar minha ansiedade, as ruas estavam cheias de humanos.
No caminho meu peito pulsava freneticamente, não o coração batendo, um misto de ansiedade e angustia convulsivamente liberava ondas que percorriam minha caixa toráxia. A necessidade, ou melhor, a urgência de estar com ele era tudo o que sentia. Precisava encontrá-lo, sentir seu toque, o sentimento estava se materializando em forma de dor. Sentia sua falta. Estaria perdendo a razão? Como um rosto e um perfume poderiam ter tanto efeito? Como o sonho e a lembrança poderiam ser capazes de tamanha efervescência? Seria a chama ardendo parte natural do ser vampira?
Entrando no hotel fui diretamente à recepção e pedi para encerrarem minha conta. Atravessei em seguida o lobby em direção aos elevadores, ainda controlando meus passos para parecer humana, absorta em meus pensamentos. Foi então que ouvi:
-Olivia?
Parei, eu reconheci a voz imediatamente mas não me virei, ele devia estar uns dois metros atrás de mim, provavelmente no largo sofá de couro marrom. Imediatamente apaguei “Licancabur” de minha cabeça e pensei sequencialmente em arrumar as malas e partir para o Dubai. Era Heiko, esperava confundi-lo continuei em direção ao elevador.
-Nyx?
Agora precisava responder ao chamado, eu me virei lentamente e abri um falso sorriso surpreso tentando em vão parecer convincente.
-Heiko, não é? Como se eu fosse indiferente o bastante em relação ao único outro vampiro que eu havia encontrado para não me lembrar de seu nome.
-Você pretende partir?
-Bem, acho que você já viu isso dentro de mim, e apontei meu indicado direito para minha testa.
-Mas... Dubai? O que você pretende naquele lugar?
-Visitar o deserto - o deserto... essa era minha estratégia, já que estava focada em conhecer outro deserto, o do Atacama, assim a mentira se tornava mais convincente - quero provar sangue árabe, eu ri debochada.
- Você é maluca mesmo, não lhe basta toda a diversidade cultural de São Paulo?
- Não, não basta, estou muito ansiosa – o que era verdade – para conhecer outros lugares. Quero viver minha nova vida, carpe diem!
- como se sua existência estivesse chegando ao fim?
Eu senti um frio percorrer meu corpo, gelei – está querendo me dizer alguma coisa? Minha garganta se fechou em um nó.
-Apenas que São Paulo pode ser suficiente para você.
-Heiko, a verdade! Ordenei, eu sentia uma vibração estranha vindo dele.
-Você está apenas amadurecendo, quando evoluir completamente se tornara um espécime incrível.
-Não mude de assunto!
-não pretendo, apenas me permiti uma observação.
Calamos enquanto outros hóspedes passaram por nós, ele aproveitou para se levantar e chegar um pouco mais perto, em seguida perguntou:
-você vai atrás dele, não vai?
Eu tremi, era uma pergunta retórica, ele sabia a resposta. Mas tinha esperança que fosse apenas um blefe, afinal eu espremia minha mente tentando confundi-lo com pensamentos sobre o Dubai.

-Ele quem? Perguntei.
-Você sabe...
-Não, não sei. Eu deveria estar procurando por alguém? E o que mais você sabe sobre mim que eu não sei? Agora era eu quem tentava conduzir o assunto.
-Você esta mais esperta agora, aprendeu a cavar trincheiras em sua mente...
-E você deveria desistir de tentar informações que eu não tenho e deixar de ser tão evasivo. Seria educado manter um dialogo real comigo, sair da posição de inquisidor!
- Você não precisa ser tão agressiva, ele disse, ao mesmo tempo desviou o olhar para outro grupo de hospedes que se aproximava, não queremos que ouçam nossa conversa.
Pude perceber o quanto havia aumentado a minha voz.
-Sobe comigo?
-Claro! E ele gentilmente estendeu seu braço em direção ao elevador.
Enquanto subíamos em direção ao quarto foquei em banalidades como arrumar malas, providenciar passaporte, etc.. Ele permanecia estático ao meu lado, leves olheiras cercavam seus pequenos olhos azuis, vestia uma camiseta azul-marinho de mangas longas e jeans, tinha uma mochila preta em suas costas, muito casual para que qualquer humano suspeitasse.
O elevador chegou ao 18º andar rapidamente, caminhamos até o quarto, ele continuava mudo e pensativo ao meu lado. Abri a porta com o cartão magnético e fiquei feliz ao ver que estava tudo em ordem, não havia mais sinal das horas que passei deitada no chão, respirei aliviada.
Próximo à grande janela, além da chaiselongue havia também uma mesinha redonda com duas cadeiras, que junto com o guarda-roupas, a cama e um criado-mudo completavam minha mobília. Sobre a mesinha havia um bloco de papel de carta e alguns envelopes com a marca d’água do hotel. Sobre eles eu havia deixado uma caneta uniball, mas não haviam anotações, para minha sorte.
Apontei para uma cadeira e silenciosamente ele sentou, eu repeti seu gesto e sentei em sua frente, estávamos de lado para a grande cidade. Ele fixou então seus olhos nos meus.
-Você vive apenas aqui em São Paulo? Perguntei para quebrar o gelo olhando em seguida para a cidade, fugindo de sues olhos.
Ele buscou meus olhos novamente, seu olhar profundo denunciava suas tentativas de invadir minha mente, eu soltei um grande suspiro enquanto aguardava suas palavras.
-Não, não moro em lugar nenhum, me considero um peregrino.
-Peregrino? Interessante sua definição de si mesmo! E qual o motivo de sua peregrinação? Continuei tentando desviar sua atenção.
-Essa é uma pergunta que não posso te responder agora.
-Um dia?
- Um dia.
- E há alguma coisa que você possa me responder agora? Eu pisava em ovos, mas dessa vez ele parecia aberto à verdade.
-Vá atrás dele, mas não deixe que te descubram, você esta dando na cara! Ele me disse rispidamente.
-O que? Atrás de quem? Eu estava chocada! Como ele era direto...
-Sua vibração é muito forte, se eu pude sentir outros também sentirão. O amor de vocês é muito forte, imenso... Ele fez uma pausa, olhou para o chão por alguns instantes e continuou em seguida:
-Seu corpo está exalando um odor muito forte, é como se você, me desculpe à comparação, fosse uma cadela no cio. Tente disfarçar e suprimir suas angustias, suas emoções são um grande chamariz para outros como nós, e há outros. Você ainda não compreende tudo o que é capaz, tudo que somos capaz. Sei que após ter sido abandonada naquela galeria de esgoto você ainda não teve a oportunidade de compreender plenamente o que é ser como somos e age como uma órfã alheia à realidade, necessita conselhos, entender melhor sua condição antes de procurar por ele.
Eu estava em choque, meus olhos fixos no azul violáceo dos seus, estava estarrecida com suas palavras. Mais que tomar consciência de minha condição precária foi saber que ele era real, que ele também me amava o que me perturbou. Heiko demonstrou perceber que havia dito muito pra mim, se soltou um pouco procurando um modo mais sutil de continuar mas eu interrompi, precisava de respostas diretas.
-Você o conhece? Perguntei.
-Sim, fomos muito unidos. O que você sabe dele?
-Até ontem ignorava sua existência, até agora só desejava que ele fosse real.
-Ele é!
-E qual seu nome?
-Aquila é um deles.
-Aquila? Ele é italiano?
-Em tese, mas isso não é o que importa.
-Por que ele não está aqui comigo? Senti uma dor terrível ao formular essa pergunta.
-Ele se foi quando pensou que você estava morta.
-Como? Por minha causa? Eu estava confusa demais e ainda tentava manter algumas barreiras psicológicas.
-Olha, mais uma vez eu já te disse mais do que devia, Olivia.
-Mas... fui interrompida
-Espere, eu preciso terminar, foi pra isso que vim! - ele apoiou seus cotovelos sobre a mesa se aproximando de mim. - Tente controlar suas emoções! Tente racionalizar! Você já aprendeu a controlar seus instintos, agora deve fazer o mesmo com seus sentimentos. Outros também estão atrás de Aquila, vampiros poderosos que a essa altura já sabem de sua intenção de partir para o deserto atrás dele.
-Quem...
-Não me interrompa, por favor! Ele ordenou e eu obedeci como uma pupila a seu tutor.
-Você conseguiu bem bloquear seu destino real para mim, continue assim, Dubai é um bom destino. Se concentre nisso, prepare sua viagem para lá, com calma, pense nos mínimos detalhes, providencie um passaporte, compre um vôo. Mude seu destino apenas no ultimo instante, você será caçada a partir de agora. Você será observada por outros Vampiros, eles estão chegando. Mas vá, parta em busca dele, ele merece a felicidade a seu lado, mais forte ainda do que a vibração que senti em você foi o que percebi nele quando pensou que você estava morta. Não sei como você conseguiu sua pista mas vá encontrá-lo!
Meu rosto devia espelhar minha incerteza, minha desconfiança pois Heiko levou sua mão esquerda à boca e cravando os dentes no dedo indicador, abriu uma pequena fenda por onde seu sangue começou a fluir.
-Deguste! Ele me ordenou enquanto pousava seu dedo em meus lábios entreabertos.
-Concentre-se.
Imediatamente após seu sangue tocar minha língua fechei meus olhos e comecei a ter visões, apesar da pequena quantidade de fluido as imagens eram surpreendentemente claras. Pude sentir a sinceridade de sua alma e por uma fração de tempo visualizei dois homens lutando, suas costa se tocavam, eles se defendiam, eram Áquila e Heiko de espadas em punho em uma paisagem úmida e cinza, cercados de árvores desfolhadas, eles lutavam contra homens vestidos com peles e trapos. Em seguida outro flash, Aquila atrás de mim, um homem alto, cabelos cacheados cor de mel, assim como seus olhos, ombros largos e braços fortes que me envolveram em um abraço protetor, senti meu corpo estremecer com a lembrança daquele abraço. Ele era lindo e extremamente elegante, usava um jeans escuro, camiseta branca com decote “v” e um paletó de veludo cotele marrom. Seus lábios rosados vieram na direção de minha orelha... outro flash! Vi seu rosto deformado por dor e desespero, então me senti sendo puxada de um sonho, Heiko interrompera o fluxo.
-Suficiente!
Entendi, ele precisava preservar suas memórias. Foram apenas poucos segundos, mas eu estava realizada por ter a confirmação de que ele era real, não havia como dissimular a verdade gravada no sangue.
-Acredita em mim agora?
-Sim, eu vi.
-Então comece já a se preparar, você tem uma longa viagem pela frente. Há um pequeno canal de comunicação entre vocês, preste muita atenção às sutilezas de sua intuição, ele está cego pela dor mas você será capaz enxergar seus passos. E não se esqueça de bloquear sua mente para outros vampiros.
Nossa conversa estava encerrada, Heiko levantou e caminhou em direção à porta, eu continuei sentada enquanto percebi que ele se afastava, tentando esconder a agradável imagem do abraço em uma parte de mim onde não pudesse ser encontrada por outro vampiro.

II - Primeiro Encontro

Acordei um pouco antes do pôr-do-sol, a intensidade da luz que entrava pela abertura na parede não me cegava mas provocava uma penumbra que dificultava um pouco a visão.
-Será que eu viro cinza no sol?- Melhor não arriscar.

Não demorou muito e o sol invernal foi embora, minha visão melhorou rapidamente, pude focar os blocos de concreto na minha frente com aspereza, o mofo, as partículas em suspensão... eu enxergava muito bem!

Olhei pra meu corpo, eu era magra, a pele bem clara mas não completamente branca como se espera de um vampiro, tinha um leve matiz rosa, mas ainda sim bem pálida. Meus pés não eram nem grandes nem pequenos, minhas pernas eram bem torneadas e longas, minhas canelas não eram finas. Meu quadril parecia ser proporcional apesar de eu estar usando uma saia larga que antes pertencera a uma mulher mais baixa que eu. Levantei o tecido leve da blusa e notei meu ventre rígido, a sombra de uma linha vertical definia meu abdômen. Meus seios eram firmes e grandes, aureolas de um tom entre o rosa e o salmão coroavam pequenos mamilos. Abaixei a blusa e me concentrei em meus braços, finos longos e com músculos levemente definidos. Minhas mãos assim como meus pés não eram nem grandes nem pequenas, mas podia dizer que tinha dedos longos que terminavam em unhas delicadas, um pouco compridas e ovaladas nas extremidades. Levei minhas mãos ao rosto, como seria? A textura de minha pele me agradou, ao meu toque pareceu muito macia e regular – um pêssego! Passei a mão por meus cabelos compridos, eles pendiam ate a cintura em um repicado meio assimétrico, eles eram levemente ondulados e castanhos claro, um castanho com toque vermelho.

Ao terminar de percorrer meu corpo percebi o quanto estava suja, precisava me ajeitar um pouco antes de sair livremente pela cidade.

Eu voltei à rua e decidi caminhar em direção as outras residências procurando por uma moradora com tamanho compatível ao meu. Fiquei impressionada ao perceber que podia sentir o odor das pessoas dentro das casas e esse cheiro me dizia coisas sobre elas, sexo, estado de humor, idade aproximada, o que haviam comido... Após alguns quarteirões senti o cheiro de uma mulher sozinha em casa, ela deveria ter um físico como o meu e cheirava limpa. Eu estava em frente a um muro amarelo enxofre, emoldurado por arames de aço, no canto esquerdo da fachada um grande portão de madeira era a porta da garagem, a direita outro portão de madeira, este como uma porta, era ladeado por duas moitas de moréias. –entrarei pela frente- pensei e então saltei para dentro da casa.

Aterrissei em um caminho de pedras que cortava um pequeno jardim dirigindo-se a uma porta de vidro e madeira. Eu não forçaria a porta, queria o elemento surpresa. Enchi o peito de ar e percebi onde a mulher estava, um cômodo com uma abertura para o corredor direito da casa, provavelmente seu quarto. Segui rapida porém silenciosamente na direção da janela, a mulher estava sentada na cama de costas para mim, descalçando seus sapatos. Seu cheiro abriu meu apetite, embora eu ainda estivesse saciada da noite anterior, mas pensei: -por que não?- e pulei para dentro e cai exatamente atrás dela, em cima da cama. Ela se assustou e com um grito tentou me repelir, mas eu já a tinha presa em meus braços. Fui contida por seu olhar de pânico, como ainda não conhecia a resposta para a maioria de minhas questões, olhei bem fundo em seus olhos e a atirei no chão como uma criança teria feito com uma boneca. Mais gritos, e então eu disse:

-Se não quiser morrer agora não tente nada!

Ela levantou e correu para a porta do quarto, eu obviamente mais rápida a ultrapassei e fechei a porta com um estrondo.

-Eu disse nada! E não vou repetir.

Ela consentiu com a cabeça.

Eu olhei bem seu corpo a fim de compará-lo com o meu – deve servir- eu disse sem que a pobre mulher pudesse compreender o que estava acontecendo então perguntei:

-Espelho?

Ela, ainda apavorada apontou para uma das portas de seu grande armário, eu abri e então pude finalmente me ver por inteiro no grande espelho de cristal. Gostei do que vi, a minha imagem possuía grande harmonia, me senti bela como uma estatua grega, meus olhos eram castanho avermelhados como meu cabelo, meu nariz era reto e proporcional, minha boca volumosa e meus dentes brancos como giz. Minhas sobrancelhas eram bem delineadas formando um arco misterioso sobre meus olhos, meus cílios negros realçavam a sua cor avermelhada. Mas eu estava realmente suja e as roupas me deixavam ridícula.

Abri todas as oito portas do grande armário embutido de imbuia, vi alguns cachecóis –devem servir- e me direcionei a mulher, que estava agora sentada ereta em uma berger com estampa floral sobre fundo turquesa, me observando.

Eu amarrei suas mãos e pés com os cachecóis, joguei-a em cima da cama onde fixei suas mãos sobre sua cabeça na madeira da cabeceira.

O quarto era uma grande suíte, aproveitei para tomar uma boa chuveirada, lavei cuidadosamente meus cabelos, esfreguei meu corpo.

Pude ouvir os soluços vindos do quarto enquanto curtia a ducha mas não me importei, minha cabeça ardia com a questão:

Quem eu sou?

Desliguei a ducha e sai do box ainda molhada, deixando um rastro de gotas que brilhavam como cabochões no piso de porcelanato branco mescla que tentava imitar um bom Carrara. Fui ao espelho que ficava sobre a pia cheia de cremes e perfumes, abri todas as gavetas e espalhei seus conteúdos na cuba braça, havia toda a sorte de cosméticos, maquiagens, escovas... Penteei meus cabelos molhados com uma grande escova que me pareceu apropriada, passei um delineador negro nos olhos e um pouquinho de sombra fume, não precisava mais, aliás toda a maquiagem era dispensável pra mim.

Voltei ao quarto e poderia ter me esquecido da mulher na cama se não fosse por seu cheiro e seus soluços, então ela me perguntou:

-O que você vai fazer comigo?

-Não sei ainda...

-Você vai me matar?

-Talvez.

-Por favor, tenha piedade!

-Depois discutiremos isso! Disse indiferente e ela se calou mais uma vez, eu devia inspirar muito medo, pensei. Toda a conversação ocorreu sem que eu sequer me virasse para olhá-la, procurava o que vestir, minha aparência naquele momento me importava mais do que a vida angustiada em cima daquela cama.

Abri sua gaveta de lingerie e escolhi um conjunto de renda azul royal, gostei da cor sobre minha pele, peguei um vestido marrom com gola rule para esconder as cicatrizes em meu pescoço, o vestido tinha mangas compridas e era de um comprimento um pouco acima do joelho, justo mas sem marcar demais o corpo.

-Você tem bom gosto! Brinquei, havia um prazer sádico em agir com banalidade.

Dirigi-me aos sapatos e escolhi um peep toe cor da pele que alongava ainda mais minhas pernas. Quando me olhei no espelho novamente fiquei fascinada com o que vi, mas minha sessão narcisista durou pouco tempo, finalmente olhei novamente para a figura sobre a cama, ela me olhou de volta apavorada com seus olhos mareados.

-Hoje você vive!

Não foi por pena ou compaixão que disse essas palavras, eu apenas tinha perdido meu interesse nela, queria uma presa mais interessante.

Desamarrei suas mãos e fui embora.
Não sei que direção tomei ou por quanto tempo me perdi nas ruas da cidade, eu ainda estava muito confusa, nada além de dor em minha memória e a certeza de ser diferente.

Cheguei a uma avenida com certa vida noturna, as pessoas andavam pela rua conversando, muitas sobre os filmes que acabavam de assistir, na avenida, Paulista parecia ser seu nome, notei vários cinemas. Caminhei pela larga calçada ate um casarão antigo, perdido entre os prédios, onde pessoas se reuniam em um sarau. Nos jardins o odor de rosas se misturava perfeitamente com o das pessoas na varanda. A casa em estilo eclético com toque francês tinha uma grande varanda em “L” com uma face voltada para a avenida e outra para o jardim. Ali me senti a vontade, eu estava familiarizada com o lugar. Teria estado ali antes?

Sentei em um banco no jardim, coloquei as mãos sob as pernas e fechei os olhos, permaneci assim por alguns instantes quando senti uma mão em meu ombro esquerdo. Imediatamente abri os olhos e saltei na direção oposta, em uma fração de segundos eu estava em pé, minhas mãos fechadas, o corpo levemente curvado para frente, enfim, eu estava em posição de ataque.

- Não se assuste!

Ele era muito interessante, alto, cabelos negros, olhos pequenos e azuis.

- O que você quer? Perguntei.

-Saber de você.
-Eu...?

-Sim, algum problema?

-pode ser... - o que eu deveria responder? Percebi então que ele não era como os outros, ele era como eu, seu coração silenciado, sua cor, a textura da pele, os dentes perfeitos, ficou claro que éramos da mesma espécie, eu só não sabia se isso era bom ou ruim.

E então?

Precisava de um nome. - Me chamo Nyx, respondi, escolhendo o nome com um reflexo.

-Nyx? Ele gargalhou.

- Então a frágil Olivia se transformou na deidade da noite?

Olivia? Era esse meu nome? Mas precisava de uma resposta, não queria mostrar o quanto estava perturbada.

-Me vejo mais como a filha de Caos.

- Você não se lembra de muita coisa, não é?

-Como...

-Posso ler o que se passa por sua cabeça, com o tempo você aprenderá a enxergar através das pessoas e também a bloquear os indesejados.

Você enxergou essa Olivia dentro de mim?

-Não, eu te conheci Olivia.

- Eu fui Olivia?

- Sim, foi.

-E o que sou agora?

-Uma vampira, assim como eu, mas você realmente não se lembra de nada?

-Não, nada, acho que isso você já deve ter lido em meu cérebro, bem como todas as questões que agora inundam minha cabeça, e é bom saber que sou realmente uma vampira. - Ao menos um fato estava esclarecido, mas ao mesmo tempo minha intuição me dizia para eu não confiar nele. – isso é normal?

- Não, não é. Mas também não tenho como te dizer o que aconteceu para que você se esquecesse.
- Você ainda não me disse seu nome, perguntei tentando conseguir um poço mais de intimidade para assim obter algumas outras respostas.
Meu nome é Heiko.

Você é do leste europeu? Seu sotaque carregado e seu nome não negavam sua origem, bem como suas feições eslavas.

-Muito bem, sou polonês.

- Eu pareço me lembrar de varias coisas, mas nada a respeito de minha própria vida.

-Interessante, você cita o mito Nyx, deusa da noite filha de Caos mas não se lembra de seu próprio nome.

-Que mais você sabe sobre mim?

-Não muito, nos encontramos apenas uma vez e rapidamente. Você estava com outros vampiros, mas ainda não era uma de nos.

-Com quem eu estava?

-Com os irmãos Oxana e Dmitry, estava na mesma mesa no terraço do hotel Unique, mas você se retirou quando cheguei.

-E por quê?

- Eles pediram, sabe como é, você era apenas uma humana, em seguida resolvi meu assunto com eles e fui embora, apenas agora voltei a te encontrar.

Oxana e Dmitry, Olivia... esses nomes não me diziam nada.

Resolvi aproveitar o fato dele poder invadir meus pensamentos e mentalmente formulei a pergunta: quem são Oxana e Dmitry? E ele e me devolveu imediatamente outra pergunta:



- Já te ocorreu que talvez perder a memória tenha sido útil a sua sobrevivência?

- Quem são eles?

-Apenas outros dois vampiros, eu não deveria ter mencionado.

-Agora é tarde, por favor me de algumas respostas...- supliquei.

-Você não vai se queimar se exposta ao sol, mas a intensidade da luz debilitará bem sua visão; sim, você necessita de sangue para sobreviver, mas não necessariamente humano; você deve se misturar a multidão e não revelar o que você é; sua força física e sua mente são únicas armas contra outros vampiros...

-Oxana e Dmitry?

-Bem, eu tenho que ir…

-Espere!

-Não posso, além do mais acho que já fiquei mais tempo do que deveria em sua companhia.

-Então você sabe de mais alguma coisa...

-Até breve!

Antes que eu movesse meus lábios novamente ele correu em direção à avenida, não tive a intenção de ir atrás, estava muito transtornada com suas informações, mas minha intuição me dizia para não procurar pelos russos.

I - Nasce uma Vampira

Dor, calor, queimação, fogo... minha cabeça fervia, literalmente, podia sentir o sangue borbulhando ao passar por meu crânio, tentei abrir os olhos mas fui impedida pela claridade, imaginei que mesmo se pudesse abri-los de nada me adiantaria, a luz me cegava. eu estava em posição fetal, a cabeça sobre meu braço esquerdo, meu longo cabelo cobrindo parte de meu rosto, tateei meu corpo devagar com minha mão direita nada estranho alem de minha nudez, onde eu estava? O que teria acontecido? Dor e angustia, o chão frio e úmido era meu único alento. Passei minha mão por meu estomago, meus seios, ombros, pescoço, -sim, meu pescoço!- esse ponto era a origem de minha dor, sentia línguas de fogo passando por todo meu corpo, tentei me esticar para ter um pouco mais de conforto ao aumentar a superfície de contato com o piso que agora me parecia lamacento, sua textura havia se modificado, - impressão minha - pensei, e então a dor se intensificou, minha cabeça já não ardia tanto comparada ao que sentia em minhas entranhas, agora era esse o principal ponto a arder, passei minha mão ao umbigo -Ha quanto tempo estava nessa situação? Por quanto tempo continuaria minha tortura?- Desejei morrer com todas as minhas forcas e consegui gritar, ou urrar, não sei bem... comecei a ter espasmos meus dedos se contraíram, meu coração se tornara o alvo principal agora, não sei quanto tempo agüento! Perdi as forcas e apaguei.

Acordei, era noite, ou pelo menos parecia ser, a luminosidade estava estranha, me movi com cuidado, eu estava de bruços, olhando para meu lado esquerdo tentei me localizar, eu estava em uma galeria de concreto, o piso tinha caimento para o centro da galeria onde um fio de água suja corria lentamente, a saída estava próxima, uns poucos metros a minha frente, então me dei conta que a dor tinha desaparecido por completo, me levantei apoiada a parede, o teto ficou poucos centímetros acima de minha cabeça, ainda apoiada, mas percebendo o quanto era desnecessário esse gesto, caminhei lentamente em direção a luz, como uma mariposa o teria feito.

Ao chegar ao final do fétido túnel não encontrei uma saída e sim um rio morto, uma cloaca cercada por encostas de concreto, o cheiro intenso de dejetos humanos entrava pelas minhas narinas, eu queria sair desse lugar! Na margem oposta, veículos alinhados em varias filas seguiam uma mesma direção, provavelmente sobre minha cabeça haveria outras pistas.

-Preciso sair desse buraco!

Instintivamente voltei vários metros dentro da galeria, precisava pegar impulso, me lancei novamente em direção a luz e ao chegar à saída saltei para a margem oposta, cerca de trinta metros, aterrissei atrás de uma pilha de entulho. Meu corpo branco brilhava sob as luzes da cidade, minha reação normal deveria ter sido parar um carro e pedir ajuda, me vestir com trapos, mas de alguma forma eu sabia que deveria sair sozinha dessa, eu não era normal.

Do outro lado da avenida havia um muro alto e eu podia sentir a presença de três humanos ali, saltei mais duas vezes e em seguida eu estava com meus dentes cravados em um deles, um vigilante de meia idade, antigo policial, uma existência marcada pela culpa, sem família ou amigos, ele ha muitos anos havia matado sua namorada por ciúmes, flashes de sua vida passavam sobre minha mente enquanto bebia seu sangue, suas memórias desapareceram, ele estava seco, eu queria mais! Joguei seu corpo contra a guarita vazia e saí em busca dos outros cheiros, eles estavam misturados, suspirando e gemendo, um sobre o outro os encontrei em uma espécie de almoxarifado, quando abri a porta o homem disse:

-Messias seu sacana! Volta pra guarita que ainda não chegou sua vez!

-Messias eu? Não, no máximo uma Sibila!

Não dei tempo para perguntas, antes que ele piscasse eu já estava no fundo do cômodo, seu sangue amargo descendo pelo meu esôfago, ele ate que tentou resistir – inútil – pensei enquanto me alimentava dessa vida mesquinha e pequena, seu sabor era realmente desagradável, eu estava por trás sugando seu pescoço segurando seus cabelos crespos com minha mão esquerda, fixando seu corpo contra o meu com minha perna direita presa firmemente sobre seus quadris. Senti um leve desconforto enquanto seu sangue percorria meu corpo, não gostei, com ajuda de minha mão direita quebrei seu pescoço e deixei o cadáver, passando para a próxima pessoa.

A mulher estava encolhida no canto olhando fixamente para mim, podia sentir a forte vibração de seu corpo em pânico; alguma coisa, não sei se seus olhos arregalados, seu forte odor de baunilha e sexo ou sua aparência frágil me fizeram sentir pena daquela criatura, eu também já estava praticamente saciada, então me dirigi a ela.

Parei em pé em sua frente, ela não se moveu. Pude então perceber o que se passava por sua cabeça, e percebi a pergunta-O que é você? Isso me irritou profundamente, eu não sabia a resposta, até esse momento eu havia agido seguindo apenas instintos. Senti a necessidade urgente de respostas, devolvi a pergunta:

-O que você acha que sou? - E foi então que ouvi de seus lábios trêmulos a resposta:

-Uma vampira?!

-Vampira... pensei alto. - Saia daqui! - Gritei com uma voz estridente.

A podre mulher nem sequer pensou em se vestir, saiu correndo pela fabrica e eu nunca mais a vi.

Peguei parte das roupas que estavam no chão, eu teria que me misturar. Uma mini saia jeans bem surrada desfiada nas pontas e uma camiseta pink de viscose com gola canoa e apliques prateados redondos sobre o peito esquerdo em forma de uma borboleta, não me passou pela cabeça naquele momento como poderia estar ridícula com roupas que meus quadris mal preenchiam, precisei utilizar a gravata do segundo vigilante, a qual tinha um odor acre desagradável como o sabor de seu antigo dono.
Um zumbido incessante, uma confusão de pensamentos, saciada a fome o instinto deu lugar a razão. Eu tentava organizar minha cabeça, o que estava acontecendo? Onde eu estava? Quem ou o que eu era? Estava viva ou morta? Se morta, como haveria morrido?

-Uma coisa por vez- e em meio ao turbilhão novamente o instinto:

-Preciso sair daqui!

Não sei bem se caminhei, corri ou voei, mas em poucos segundos percorri um corredor escuro, um pátio e saltei um muro de uns quatro metros, segui correndo na direção sul ou sudoeste, passei sobre trilhos ao percorrer um viaduto e apenas reparei brevemente em grandes chaminés de tijolos à esquerda, segui em frete por uma avenida cortada por grandes arvores, subi, desci... sempre correndo, alheia a todos os odores, formas, direções, o turbilhão em meu cérebro me privando os sentidos. Apenas corri, sim corri, mas mais rápido que os poucos veículos que encontrei. Cheguei a um ponto que me pareceu ser um dos mais se não o mais alto da cidade, na rua havia uma praça de um lado e casinhas geminadas de outro. Procurei um canto isolado da praça o que não foi difícil de encontrar uma vez que seu declive acentuado rapidamente privou-me de ser vista por quem passasse na rua de cima e as quaresmeiras se ergueram como uma cortina de crochê perante as residências do lado de baixo. Sentei-me sobre minhas pernas flexionadas como as de uma gueixa sob as copas e então foquei a paisagem, um mar de pontos incandescentes.

Inalei profundamente o ar noturno, um cheiro misto de terra, urina e eucalipto inflou meu peito.

Organizar e resolver as questões.

Primeiro o mais importante, - estou viva?

Cravei meus dedos na grama úmida pelo sereno e levantei dois tufos de terra – matéria- mas a noção de um corpo físico não respondia totalmente, será que era uma ilusão? Olhei para minhas mãos, meus braços esticados um pouco abaixo da linha de meus ombros, elas ainda estavam cheias de terra, vagarosamente abri e movimentei meus dedos para que a substância novamente caísse no chão, eu respirava, podia sentir agora o cheiro do vira-lata que fugia pela rua de baixo, o cheiro das pessoas nos carros e o enxofre dos motores dos carros. Levei a mão direita ao meu coração, ele não batia! Mas ao me recordar de Descartes conclui minha existência, eu tinha que existir, eu estava viva com coração ou sem!
Segunda questão: - Quem sou eu?
Uma Vampira? Possível, mas não me lembrava de ter saído de um ovo de vampiro ou de alguma barriga vampira. Geração espontânea? Não, eu percebi ter uma bagagem cultural não advinda do esgoto, a única certeza era a de ser diferente, não havia nada alem da dor que senti naquela galeria pluvial em minhas memórias.

Memória, é isso! Ou a falta disso...
Tentei me lembrar de meu nome, nada!

Tentei me lembrar de meu rosto, nada!

Por mais que forçasse o limite era a dor.

Respostas... preciso encontrá-las

Não sei por quanto tempo me forcei ultrapassar a barreira da dor, apenas desisti quando o céu começou a mudar de cor e minha visão a enfraquecer, instinto novamente, precisava de abrigo!

Me levantei e tentei focar a vizinhança, inflei meus pulmões e procurei por odores de mofo, cupim, fezes de ratos, qualquer sinal de uma casa abandonada nas redondezas, o vento estava a meu favor, pude notar a algumas dezenas de metros o que parecia ser a obra abandonada de uma imitação barata de um castelo ou uma fortaleza, a casa inacabada de alguma mente afetada, hilário! A obra abandonada serviria de refugio por um dia, -será que preciso saltar sobre o fosso? Gargalhei em seguida, -um pouco de humor negro ajuda! Corri em direção a casa e que decepção, nem fosso nem masmorra, dessa vez contive o riso ao me ordenar:

– Foco!
Ao invadir saltando sobre o muro procurei pelo cômodo mais escuro, encontrei um espaço de 3x2m aproximadamente com uma pequena abertura próxima ao teto em uma das paredes, provavelmente reservada para um vitrô, a qual dava diretamente para o muro de arrimo que havia no fundo do terreno. - Esse lugar será perfeito-, então encostei-me a uma das paredes laterais e deixei que meu corpo escorregasse até o chão, agora não era mais hora de procurar respostas, eu precisava descansar.