quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

II - Primeiro Encontro

Acordei um pouco antes do pôr-do-sol, a intensidade da luz que entrava pela abertura na parede não me cegava mas provocava uma penumbra que dificultava um pouco a visão.
-Será que eu viro cinza no sol?- Melhor não arriscar.

Não demorou muito e o sol invernal foi embora, minha visão melhorou rapidamente, pude focar os blocos de concreto na minha frente com aspereza, o mofo, as partículas em suspensão... eu enxergava muito bem!

Olhei pra meu corpo, eu era magra, a pele bem clara mas não completamente branca como se espera de um vampiro, tinha um leve matiz rosa, mas ainda sim bem pálida. Meus pés não eram nem grandes nem pequenos, minhas pernas eram bem torneadas e longas, minhas canelas não eram finas. Meu quadril parecia ser proporcional apesar de eu estar usando uma saia larga que antes pertencera a uma mulher mais baixa que eu. Levantei o tecido leve da blusa e notei meu ventre rígido, a sombra de uma linha vertical definia meu abdômen. Meus seios eram firmes e grandes, aureolas de um tom entre o rosa e o salmão coroavam pequenos mamilos. Abaixei a blusa e me concentrei em meus braços, finos longos e com músculos levemente definidos. Minhas mãos assim como meus pés não eram nem grandes nem pequenas, mas podia dizer que tinha dedos longos que terminavam em unhas delicadas, um pouco compridas e ovaladas nas extremidades. Levei minhas mãos ao rosto, como seria? A textura de minha pele me agradou, ao meu toque pareceu muito macia e regular – um pêssego! Passei a mão por meus cabelos compridos, eles pendiam ate a cintura em um repicado meio assimétrico, eles eram levemente ondulados e castanhos claro, um castanho com toque vermelho.

Ao terminar de percorrer meu corpo percebi o quanto estava suja, precisava me ajeitar um pouco antes de sair livremente pela cidade.

Eu voltei à rua e decidi caminhar em direção as outras residências procurando por uma moradora com tamanho compatível ao meu. Fiquei impressionada ao perceber que podia sentir o odor das pessoas dentro das casas e esse cheiro me dizia coisas sobre elas, sexo, estado de humor, idade aproximada, o que haviam comido... Após alguns quarteirões senti o cheiro de uma mulher sozinha em casa, ela deveria ter um físico como o meu e cheirava limpa. Eu estava em frente a um muro amarelo enxofre, emoldurado por arames de aço, no canto esquerdo da fachada um grande portão de madeira era a porta da garagem, a direita outro portão de madeira, este como uma porta, era ladeado por duas moitas de moréias. –entrarei pela frente- pensei e então saltei para dentro da casa.

Aterrissei em um caminho de pedras que cortava um pequeno jardim dirigindo-se a uma porta de vidro e madeira. Eu não forçaria a porta, queria o elemento surpresa. Enchi o peito de ar e percebi onde a mulher estava, um cômodo com uma abertura para o corredor direito da casa, provavelmente seu quarto. Segui rapida porém silenciosamente na direção da janela, a mulher estava sentada na cama de costas para mim, descalçando seus sapatos. Seu cheiro abriu meu apetite, embora eu ainda estivesse saciada da noite anterior, mas pensei: -por que não?- e pulei para dentro e cai exatamente atrás dela, em cima da cama. Ela se assustou e com um grito tentou me repelir, mas eu já a tinha presa em meus braços. Fui contida por seu olhar de pânico, como ainda não conhecia a resposta para a maioria de minhas questões, olhei bem fundo em seus olhos e a atirei no chão como uma criança teria feito com uma boneca. Mais gritos, e então eu disse:

-Se não quiser morrer agora não tente nada!

Ela levantou e correu para a porta do quarto, eu obviamente mais rápida a ultrapassei e fechei a porta com um estrondo.

-Eu disse nada! E não vou repetir.

Ela consentiu com a cabeça.

Eu olhei bem seu corpo a fim de compará-lo com o meu – deve servir- eu disse sem que a pobre mulher pudesse compreender o que estava acontecendo então perguntei:

-Espelho?

Ela, ainda apavorada apontou para uma das portas de seu grande armário, eu abri e então pude finalmente me ver por inteiro no grande espelho de cristal. Gostei do que vi, a minha imagem possuía grande harmonia, me senti bela como uma estatua grega, meus olhos eram castanho avermelhados como meu cabelo, meu nariz era reto e proporcional, minha boca volumosa e meus dentes brancos como giz. Minhas sobrancelhas eram bem delineadas formando um arco misterioso sobre meus olhos, meus cílios negros realçavam a sua cor avermelhada. Mas eu estava realmente suja e as roupas me deixavam ridícula.

Abri todas as oito portas do grande armário embutido de imbuia, vi alguns cachecóis –devem servir- e me direcionei a mulher, que estava agora sentada ereta em uma berger com estampa floral sobre fundo turquesa, me observando.

Eu amarrei suas mãos e pés com os cachecóis, joguei-a em cima da cama onde fixei suas mãos sobre sua cabeça na madeira da cabeceira.

O quarto era uma grande suíte, aproveitei para tomar uma boa chuveirada, lavei cuidadosamente meus cabelos, esfreguei meu corpo.

Pude ouvir os soluços vindos do quarto enquanto curtia a ducha mas não me importei, minha cabeça ardia com a questão:

Quem eu sou?

Desliguei a ducha e sai do box ainda molhada, deixando um rastro de gotas que brilhavam como cabochões no piso de porcelanato branco mescla que tentava imitar um bom Carrara. Fui ao espelho que ficava sobre a pia cheia de cremes e perfumes, abri todas as gavetas e espalhei seus conteúdos na cuba braça, havia toda a sorte de cosméticos, maquiagens, escovas... Penteei meus cabelos molhados com uma grande escova que me pareceu apropriada, passei um delineador negro nos olhos e um pouquinho de sombra fume, não precisava mais, aliás toda a maquiagem era dispensável pra mim.

Voltei ao quarto e poderia ter me esquecido da mulher na cama se não fosse por seu cheiro e seus soluços, então ela me perguntou:

-O que você vai fazer comigo?

-Não sei ainda...

-Você vai me matar?

-Talvez.

-Por favor, tenha piedade!

-Depois discutiremos isso! Disse indiferente e ela se calou mais uma vez, eu devia inspirar muito medo, pensei. Toda a conversação ocorreu sem que eu sequer me virasse para olhá-la, procurava o que vestir, minha aparência naquele momento me importava mais do que a vida angustiada em cima daquela cama.

Abri sua gaveta de lingerie e escolhi um conjunto de renda azul royal, gostei da cor sobre minha pele, peguei um vestido marrom com gola rule para esconder as cicatrizes em meu pescoço, o vestido tinha mangas compridas e era de um comprimento um pouco acima do joelho, justo mas sem marcar demais o corpo.

-Você tem bom gosto! Brinquei, havia um prazer sádico em agir com banalidade.

Dirigi-me aos sapatos e escolhi um peep toe cor da pele que alongava ainda mais minhas pernas. Quando me olhei no espelho novamente fiquei fascinada com o que vi, mas minha sessão narcisista durou pouco tempo, finalmente olhei novamente para a figura sobre a cama, ela me olhou de volta apavorada com seus olhos mareados.

-Hoje você vive!

Não foi por pena ou compaixão que disse essas palavras, eu apenas tinha perdido meu interesse nela, queria uma presa mais interessante.

Desamarrei suas mãos e fui embora.
Não sei que direção tomei ou por quanto tempo me perdi nas ruas da cidade, eu ainda estava muito confusa, nada além de dor em minha memória e a certeza de ser diferente.

Cheguei a uma avenida com certa vida noturna, as pessoas andavam pela rua conversando, muitas sobre os filmes que acabavam de assistir, na avenida, Paulista parecia ser seu nome, notei vários cinemas. Caminhei pela larga calçada ate um casarão antigo, perdido entre os prédios, onde pessoas se reuniam em um sarau. Nos jardins o odor de rosas se misturava perfeitamente com o das pessoas na varanda. A casa em estilo eclético com toque francês tinha uma grande varanda em “L” com uma face voltada para a avenida e outra para o jardim. Ali me senti a vontade, eu estava familiarizada com o lugar. Teria estado ali antes?

Sentei em um banco no jardim, coloquei as mãos sob as pernas e fechei os olhos, permaneci assim por alguns instantes quando senti uma mão em meu ombro esquerdo. Imediatamente abri os olhos e saltei na direção oposta, em uma fração de segundos eu estava em pé, minhas mãos fechadas, o corpo levemente curvado para frente, enfim, eu estava em posição de ataque.

- Não se assuste!

Ele era muito interessante, alto, cabelos negros, olhos pequenos e azuis.

- O que você quer? Perguntei.

-Saber de você.
-Eu...?

-Sim, algum problema?

-pode ser... - o que eu deveria responder? Percebi então que ele não era como os outros, ele era como eu, seu coração silenciado, sua cor, a textura da pele, os dentes perfeitos, ficou claro que éramos da mesma espécie, eu só não sabia se isso era bom ou ruim.

E então?

Precisava de um nome. - Me chamo Nyx, respondi, escolhendo o nome com um reflexo.

-Nyx? Ele gargalhou.

- Então a frágil Olivia se transformou na deidade da noite?

Olivia? Era esse meu nome? Mas precisava de uma resposta, não queria mostrar o quanto estava perturbada.

-Me vejo mais como a filha de Caos.

- Você não se lembra de muita coisa, não é?

-Como...

-Posso ler o que se passa por sua cabeça, com o tempo você aprenderá a enxergar através das pessoas e também a bloquear os indesejados.

Você enxergou essa Olivia dentro de mim?

-Não, eu te conheci Olivia.

- Eu fui Olivia?

- Sim, foi.

-E o que sou agora?

-Uma vampira, assim como eu, mas você realmente não se lembra de nada?

-Não, nada, acho que isso você já deve ter lido em meu cérebro, bem como todas as questões que agora inundam minha cabeça, e é bom saber que sou realmente uma vampira. - Ao menos um fato estava esclarecido, mas ao mesmo tempo minha intuição me dizia para eu não confiar nele. – isso é normal?

- Não, não é. Mas também não tenho como te dizer o que aconteceu para que você se esquecesse.
- Você ainda não me disse seu nome, perguntei tentando conseguir um poço mais de intimidade para assim obter algumas outras respostas.
Meu nome é Heiko.

Você é do leste europeu? Seu sotaque carregado e seu nome não negavam sua origem, bem como suas feições eslavas.

-Muito bem, sou polonês.

- Eu pareço me lembrar de varias coisas, mas nada a respeito de minha própria vida.

-Interessante, você cita o mito Nyx, deusa da noite filha de Caos mas não se lembra de seu próprio nome.

-Que mais você sabe sobre mim?

-Não muito, nos encontramos apenas uma vez e rapidamente. Você estava com outros vampiros, mas ainda não era uma de nos.

-Com quem eu estava?

-Com os irmãos Oxana e Dmitry, estava na mesma mesa no terraço do hotel Unique, mas você se retirou quando cheguei.

-E por quê?

- Eles pediram, sabe como é, você era apenas uma humana, em seguida resolvi meu assunto com eles e fui embora, apenas agora voltei a te encontrar.

Oxana e Dmitry, Olivia... esses nomes não me diziam nada.

Resolvi aproveitar o fato dele poder invadir meus pensamentos e mentalmente formulei a pergunta: quem são Oxana e Dmitry? E ele e me devolveu imediatamente outra pergunta:



- Já te ocorreu que talvez perder a memória tenha sido útil a sua sobrevivência?

- Quem são eles?

-Apenas outros dois vampiros, eu não deveria ter mencionado.

-Agora é tarde, por favor me de algumas respostas...- supliquei.

-Você não vai se queimar se exposta ao sol, mas a intensidade da luz debilitará bem sua visão; sim, você necessita de sangue para sobreviver, mas não necessariamente humano; você deve se misturar a multidão e não revelar o que você é; sua força física e sua mente são únicas armas contra outros vampiros...

-Oxana e Dmitry?

-Bem, eu tenho que ir…

-Espere!

-Não posso, além do mais acho que já fiquei mais tempo do que deveria em sua companhia.

-Então você sabe de mais alguma coisa...

-Até breve!

Antes que eu movesse meus lábios novamente ele correu em direção à avenida, não tive a intenção de ir atrás, estava muito transtornada com suas informações, mas minha intuição me dizia para não procurar pelos russos.

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